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Uma odisseia no açougue

 

Dos poucos e raros prazeres que se tem na vida, um deles é passar dois ou três dias internado num certo “açougue”. Fala-se que seu nome quase santo não combina com tanta desfaçatez. Mas o imundo, sujo e infecto logradouro público é uma espécie de campo de concentração. Um Auschwitz em pleno século XXI. Só que em vez de exterminar judeus ou outras minorias “indesejáveis” pelo sistema, sua especialidade maior é matar cidadãos pobres e sem muita leitura de mundo. Um dos maiores símbolos de um falido Estado, sua convivência em plena capital dá a real impressão do que é viver sob a agonia da incompetência e insensatez humanas. Pauta para eleger canalhas travestidos de heróis em anos de eleição, sua angústia e tormento são transformados sempre em votos quando recebe uma telha, uma pintura ou outro reparozinho qualquer.

A cada dois anos, o Hitler da vez promete “mundos e fundos” para acabar com a podridão de seus corredores, apartamentos, salas de cirurgias, consultórios, cozinha e recepção. Mas nada parece funcionar por ali. Não há chuva que não consiga inundar suas dependências já devidamente inundadas de seboseira, ratos e tapurus. Durante a pandemia da Covid-19, para manter a sua fama de “inferno na terra”, foi o primeiro foco de Coronavírus. A cidade onde se localiza, que é um espelho de suas assustadoras e tristes mazelas, ganha todo ano verdadeiros palácios suntuosos para a Justiça, para o Ministério Público, para a administração estadual, para fóruns, Assembleia e outras ricas dependências de vidros e luxo, muito luxo mesmo, que geralmente serão usadas só pelos ricos e endinheirados. Enquanto for a casa de pobres e miseráveis será esquecido.

Raramente quando apenas por interesse eleitoreiro lhe prometem substituição, um oceano de autoridades e representantes de quase todos os poderes constituídos criam obstáculos intransponíveis para que ele continue ali exercendo a sua macabra sina de reflexo da podridão humana. Mas a cruel decadência desse “açougue”, embora seja a decadência de seus próprios administradores, só demonstra a pouca ou nenhuma empatia dos governantes com os seus governados.  Recentemente, por três dias estive lá para tratar de uma infecção de bicho-de-pé. Fui atendido por um cardiologista muito educado, mas que nada entendia de coração. Com a perna toda inchada e dolorida, fui “tratado” por um pneumologista especialista em doenças renais. Durante o tempo que fiquei internado, ele me viu só uma vez e disse que me receitaria algo para a Covid-19.

O característico mau cheiro de carne humana apodrecida é comum naquelas redondezas. E aquele imundo “açougue” pode até não ter fornos crematórios, mas toda fumaça que lhe escapa de sua quebrada e torta chaminé sempre nos remete a Dachau, Treblinka ou Sobibor. E quase todo mundo, nascido ali ou não, diz que não sabe o porquê de tudo isso. Sem receber alta de nenhum “açougueiro” de plantão, tive que fugir dali feito um louco. O meu bicho-de-pé já estava se sentido à vontade para procriar naquele ambiente podre, repugnante e sórdido. Porém o que mais chama a atenção em todas estas bizarrices é o comodismo de quem procura aquele lugar malcheiroso para curar suas doenças. Muitos dizem que ele é invisível: apesar de muitas pessoas passarem diariamente à sua frente, ninguém o vê. É como os moradores de rua da cidade sem água e esgotos. Mas o “açougue” para uma coisa sempre serve: eleger ricos.

*Foi professor em Porto Velho

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