Rondônia decreta emergência e diz que crise hídrica é um “desastre”

No decreto, governo fala de prejuízos e suspende licitações para fazer contratações públicas na estiagem

Na manhã de quinta-feira, 04, o aposentado Ângelo Ferreira, 79, chegou atrasado à consulta médica. Na casa dele não tinha água para o banho e, sequer, para escovar os dentes. Morador do Conjunto Habitacional Cristal da Calama, Zona Leste de Porto Velho (RO), ele é um dos habitantes que enfrentam escassez de água durante anos, situação que deve piorar por causa da diminuição dos reservatórios durante a estiagem severa. “Água em casa é um luxo”, lamenta.

Há mais de 30 dias não chove em Porto Velho e as denúncias de queimadas nas áreas urbanas e rurais dobraram em relação ao mesmo período do ano passado: cerca de 31 casos em junho de 2023, para 61 neste ano. No mesmo dia que o aposentado ficou sem água, o governo decretou situação de emergência em virtude da estiagem, pelo período de 180 dias.

O cenário não é animador. O decreto diz que a situação é um “desastre”, devido ao desabastecimento de água às populações localizadas nas áreas urbanas e rurais. Alerta que pode faltar água para o consumo humano e animal. Diz ainda que “atividades agrícolas, pecuária, navegabilidade dos rios e atividades econômicas essenciais à população” podem ser afetadas. O texto revoga o decreto de dezembro de 2023, quando os rondonienses atravessaram uma outra estiagem. Com a nova publicação, o estado poderá contratar obras e serviços sem licitação, que possam ser executados em até doze meses.

Desde o início do segundo semestre, que o Rio Madeira seca. Nem o repiquete por conta de chuvas nas cabeceiras amenizou a crise hídrica. No mais recente boletim hídrico (05-07-24), divulgado pela Agência Nacional de Águas (ANA) e Defesa Civil Estadual, em dez dias o rio recuou mais de 2 metros, chegando a 3,94 na sexta-feira, 05 de junho. Se comparado ao mesmo período do ano passado a diferença do nível do rio é de 2,5 metros.

Em 2023, a seca afetou mais de 500 mil pessoas no Amazonas, no Acre, em Rondônia e no Pará, e levou ao menos 55 municípios ao estado de emergência. O volume dos rios da Bacia Amazônica, a maior do mundo, alcançou os menores níveis em mais de 120 anos de medição.

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Impactos

Rios de todo estado estão reduzindo sua capacidade de produção de água desde o início do segundo semestre de 2023. O estado deve diminuir sua capacidade de transporte hidroviário pelo rio Madeira, por onde passam cargas de combustíveis, veículos, massa asfáltica, fertilizantes e alimentos diversos que abastecem o mercado regional. A movimentação de (soja e milho), madeira e minérios, comercializados para o mercado externo, a exemplo da Ásia, África, Estados Unidos, União Europeia, também deverá ser afetada.  Sem esse abastecimento, o consumidor sentirá a inflação no bolso.

Os racionamentos ou apagões de energia vão acontecer. No ano passado, durante a estiagem severa, a transmissão energética conhecida como Linhão do Madeira que liga as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau à subestação de Araraquara (SP), foi desligada, assim como o fornecimento das usinas no estado.

A rede pública e privada de ensino sofrerá. Há “risco de prejuízo pedagógico e de insegurança alimentar e nutricional aos alunos da rede pública estadual e municipal de ensino”, diz o decreto, ocasionando suspensão das atividades escolares e impedindo acesso às escolas. O governo prevê mais gastos públicos para implementar ações de resposta às mudanças climáticas. A situação de emergência foi um entendimento técnico da Coordenadoria Estadual de Proteção e Defesa Civil. Toda estrutura de governo será coordenada pelo Comitê de Crise Hídrica.

Especialistas preveem que agosto e setembro podem ser os meses mais críticos da estiagem deste ano. Desde o início de junho, o Serviço Geológico do Brasil vem registrando a queda contínua do nível do Madeira. Com a seca avançando, ribeirinhos expressam preocupação e começam a escavar poços nas comunidades.

Iniciativas

Cerca de 120 mil litros de água serão distribuídos para comunidades ao longo do rio Madeira, com início previsto para agosto e continuidade em setembro e outubro.

A Defesa Civil fornecerá água para 338 famílias das comunidades; Silveira, São Miguel, Mutuns, Pau D’Arco, Cujubim, Bom Jardim e Marmelo por transporte terrestre. Pelo meio fluvial, embarcações atenderão 78 famílias das comunidades Curicacas, Pombal, São José, Ilha Nova e Conceição do Galera.

Profissionais do Serviço Geológico e do munícipio estão perfurando o solo em busca de água. Serão construídos poços artesianos em cinco comunidades ribeirinhas do baixo Madeira. Sistemas de captação de água por bombeamento e filtragem de tratamento serão implementados para abastecimento.

Os poços artesianos estão sendo construídos nas comunidades: Terra Firme, Papagaios, Santa Catarina e nos distritos de Calama e Demarcação. São iniciativas da prefeitura de Porto Velho também.

 

Bancada do agronegócio

O estado atribui a crise hídrica a fenômenos como El Niño, que consiste no aquecimento anormal do Oceano Pacífico Equatorial, e a La Niña, que é o inverso, provocando o resfriamento do Pacífico Equatorial. Ocorre que Rondônia se tornou o estado brasileiro mais desmatado no país, fator que incide diretamente nas questões climáticas.

A supressão da floresta acontece, inclusive, em terras indígenas e áreas públicas da União para expansão de monoculturas, criação de gado, que é comercializado por multinacionais em diversos países, e, com fins de especulação imobiliária. Uma rede de negócios que conta com diversos financiadores, desde bancos e instituições públicas ao crime organizado.

A Assembleia Legislativa de Rondônia argumenta que é preciso ocupar as florestas para desenvolver cidades. Mesmo discurso implantado na época da ditadura militar, quando a Amazônia foi invadida por colonizadores passando o trator por cima da dignidade dos povos tradicionais.

A bancada antiambientalista tentou reduzir as áreas de reservas ambientais e até legislou para acabar com terras protegidas. Os deputados agiram para legalizar o garimpo no baixo rio Madeira, mas em todos os casos, foram vencidos pela lei.

Agora querem derrubar a moratória da soja, que é um pacto em vigor desde julho de 2006, realizado pela Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (ABIOVE) e pela Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (ANEC) com a sociedade civil e o governo.

O acordo prevê a não venda e o não financiamento da soja produzida em áreas que teriam sido desmatadas na Amazônia Legal. A proposta, inicialmente, foi elaborada para durar somente dois anos, mas desde de julho de 2008 tem sido renovada anualmente. O objetivo da Moratória da Soja é aliar a preservação ambiental do bioma amazônico e o desenvolvimento econômico. Isso por meio de práticas sustentáveis na região amazônica.

A bancada do agronegócio insiste em regular à venda de carne e grãos de áreas desmatadas para os mercados nacionais e internacional. Na 7ª Exposição Agropecuária de Buritis (Expobur) de 3 a 7 de julho na cidade de Buritis, distante 362 quilômetros da Capital, os políticos do estado aprovaram um projeto de lei que contou com 14 assinaturas dos 24 parlamentares com mandato.

Nele, “estabelece novos critérios para a concessão de incentivos fiscais e terrenos públicos para empresas do setor agroindustrial”. “Ao restringir o uso legal de terras, é vista por alguns como uma violação desse princípio, favorecendo grandes corporações e prejudicando pequenos e médios produtores”, diz a lei.

 

Leia a reportagem completa de Josi Gonçalves e Francisco Costa no Voz da Terra

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