A Câmara dos Deputados traz à baila, o debate sobre a proposta de reforma administrativa. A chamada PEC 32, que foi encaminhada ao Congresso Nacional pelo poder executivo em 2020 propõe alterar disposições sobre servidores, empregados públicos e a organização administrativa.
A questão da reforma administrativa no Brasil é um tema que vem sendo discutido desde a década de 1930. Desde então, várias reformas foram implementadas na administração pública, algumas delas de forma parcial, outras mais amplas, mas todas elas com vários objetivos e com uma retórica única, de que trará modernização, gestão eficiente, desburocratização e entrega de um serviço público eficaz à sociedade brasileira. Assim foi durante a era Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, governo militar e na reabertura democrática, inaugurada pelo ex-presidente José Sarney. Esse tema também esteve presente nos governos Collor, Fernando Henrique, Michel Temer e Bolsonaro. É verdade que nos Governo Dilma e Lula o tema da reforma administrativa tem encontrado certa resistência devido a identidade do seu partido com a defesa do direitos dos trabalhadores.
Em que pese a história de ataques aos direitos dos servidores públicos, se faz necessário destacar que houve grandes avanços na prestação do serviço público brasileiro, mas também muitos retrocessos. A melhoria ficou por conta da profissionalização de certos setores do serviço público, à exemplo da área de saúde, encabeçado pelo SUS que atende gratuitamente mais de 70% da população brasileira e tem reconhecido papel perante a comunidade global pelas eficientes políticas de vacinação e imunização de massas. Em outro polo há de se destacar avanços na educação pública federal, a exemplo dos institutos federais e universidades públicas e centros especializados de pesquisa científica, com a consolidação de empresas de grande relevância na área de agricultura, aviação, energia, setor industrial e agroindústria, dentre outros.
Esse modelo de serviço público, mesmo carente de aperfeiçoamento e investimentos teve sua parcela de contribuição, para que o Brasil, com todos os seus problemas de dimensões continentais chegasse a figurar entre as 6 maiores economias do planeta em 2011.
A Constituição Federal de 1988 inaugurou um importante capítulo de avanço do serviço público brasileiro ao estabelecer as bases para o fortalecimento dos direitos dos servidores, à exemplo do concurso público como forma de seleção e ingresso de quadros especializados, com estabilidade no emprego e regimes próprios de previdência que sinalizavam com segurança para os profissionais do serviço público e consequentemente a melhoria na prestação de serviço à população.
Entretanto, o serviço público e seus agentes passaram nas últimas quatro décadas, por momentos de verdadeiro massacre, a começar pelos poderosos grupos economicos e midiáticos que defendem os interesses do mercado e de grupos políticos inescrupulosos, que paulatinamente estão se apropriando da máquina pública por meio da terceirização, da nomeação de cargos comissionados e a prática de ação entre amigos na privatização de serviços públicos, se apropriando de bens e recursos públicos para enriquecimento e perpetuação no poder.
Essa cobiça política medieval levou governos neoliberais e de extrema direita, nas esferas municipal, estadual e federal a misturar modelos de administração inadequados para a realidade cultural brasileira, práticas nefastas que estão na contramão da eficiência e da eficácia na prestação dos serviços públicos. Exemplo típico desse desmonte diz respeito ao desastre causado pelos governos que conduziram o país entre 2016 a 2022 que implementaram gestões que foram verdadeiros retrocessos, com a desregulamentação e paralisação de serviços de saúde, educação, pesquisa científica, dentre outras. Essas ações nefastas representam décadas de destruição não só dos serviços públicos, mas também de direitos trabalhistas, sociais e previdenciários. Tudo isso acontecendo e a falsa desculpa para implementar reformas é sempre a mesma, “melhoria dos serviços públicos”, o que na verdade se trata mesmo é da velha retórica que se esconde atrás de uma cortina de fumaça, que embaça a visão da população brasileira, fazendo crer que os trabalhadores públicos são os culpados pela má prestação dos serviços públicos, o que é uma falácia. A falta de políticas públicas voltadas para atender as verdadeiras necessidades da população e o uso indevido da máquina administrativa por politicos e gestores corruptos é onde está o verdadeiro problema do serviço púlico do país.
Ao contrário do que diz sua ementa, a PEC 32 representa um verdadeiro Cavalo de Tróia, pois seu texto e dispositivos foram estrategicamente redigidos no governo anterior para esconder armadilhas que vão atingir direitos e garantias arduamente conquistadas pelos servidores ao longo de décadas de lutas, trabalho e estudos dedicados ao serviço público. Uma vez aprovada essa proposição, estará em curso um grande desmonte na estrutura da administração pública que vai provocar uma deterioração em todas as áreas e níveis de governo.
A principal armadilha está na forma de contratação de servidores com a criação de várias formas de vínculos nos âmbitos federal, estadual e municipal e a prevalência na admissão de funcionários temporários e os chamados terceirizados, que por necessidade do emprego podem fazer da administração pública, uma espécie de reduto de pessoas comprometidas com o governante de plantão.
Essa proposta de reforma administrativa retira direitos, cria castas no serviço público e vai permitir a demissão de servidores estáveis por simples declaração de que seus cargos são desnecessários ou se tornaram obsoletos. O fim da estabilidade, a falta de clareza nos critérios utilizados para a avaliação de desempenho provocará muita insegurança jurídica aos já assombrados servidores, que ao ingressarem nas fileiras do serviço público nas décadas de 1980 e 1990, vislumbravam uma carreira estável e uma aposentadoria integral mas seus direitos sofrem ataques a cada reforma administrativa e previdenciária implementadas pelos governos passados, que jogaram às favas o compromisso de tornar mais eficiente a máquina pública.
É bem verdade que o atual governo não vê com bons olhos a tramitação da PEC 32. Entretanto, a reforma não é mais prerrogativa do chefe do poder executivo e hoje é também cobiçada pelo parlamento no nível federal. O fato do atual governo opor resistência a essa proposta de reforma administrativa não significa que ela não vá adiante, pois a chamada grande mídia e os interesses do mercado estão a bombardear os políticos em torno da cobrança dessa reforma.
Por isso é preciso fazer uma avaliação geral do projeto, que em sua essência é muito ruim para os servidores e para a qualidade na prestação dos serviços públicos, para que sejam feitas as alterações necessárias ou mesmo propor a apresentação de outra proposição que proteja o serviço público das interferências políticas de governantes inescrupulosos, a exemplo do que ocorreu num passado recente e vem ocorrendo em outras esferas de governo. A melhor referência a ser destacada foi a péssima gestão pública vivenciada no governo passado, que praticamente paralisou os serviços de saúde, educação, transportes e proteção ambiental, ou seja, nada ficou como antes, o que se viu foi mal atendimento e o império da ineficiência e da incompetência.
Para além da piora crescente dos serviços públicos em escala macro, trazendo para a realidade dos ex-Territórios vamos citar como exemplo de retrocesso a atuação da Comissão de Transposição que funciona no Ministério da Gestão e Inovação. Criada em 2015, com a missão de realizar a análise de processos de transposição de servidores e empregados que foram contratados no período de instalação de Rondônia, Roraima e Amapá suas últimas gestões deixaram a desejar. Basta mencionar que a gestão da Comissão entre 2016 e 2018, com um reduzido número de membros, foi responsável pela transposição de mais de 7 mil servidores de Rondônia e do Amapá para o quadro federal.
Contrariamente, entre 2019 e 2022, mesmo com a ampliação da equipe de 20 para 50 membros, a Comissão apresentou resultados insatisfatórios, com menos de 3 mil servidores transpostos, ou seja, quatro anos de trabalho que demonstram uma gestão ineficiente, para dizer o mínimo. É importante registrar que já se passaram mais de 8 anos de trabalho dessa Comissão, o que é tempo suficiente para a conclusão de análise de todos os processos, mas pelo ritmo atual está muito distante de acontecer. Nesses quase seis meses dessa nova gestão muita propaganda se faz de que se avançou mais do que no governo passado em 4 anos, mas esse resultado se revela apenas uma narrativa, uma espécie de marketing, que não se reflete na realidade dos servidores de Rondônia, que continuam esperando, como ocorre também com o Amapá e Roraima para ver seus processos julgados e concluídos. Ou seja, alardeia-se aos quatro ventos que a Comissão tem uma força de trabalho composta por mais de 30 advogados dedicados a uma única atividade, porém a tão sonhada eficiência no trabalho está longe de ser alcançada na atual gestão. Exemplo disso é que a transposição de Rondônia já dura 13 anos e ainda não foi concluída,
Nesse quadro sombrio da administração pública é preciso destacar a atuação dos sindicatos, associações e confederações que são organizações criadas para defender os interesses dos servidores, até porque são mantidas com as contribuições que são descontadas mensalmente do contracheque dos filiados. Salvo raríssimas exceções de boa gestão sindical, já que não se pode generalizar, a regra no serviço público é de que os sindicalizados, reféns de contribuições compulsórias em sua folha salarial, pouco ou quase nada se sentem representados quando precisam de uma defesa concreta de seus direitos por parte das entidades de classe.
Basta mencionar que nos últimos 4 anos os servidores não tiveram qualquer reajuste e teve até ministro de estado prometendo que colocaria uma granada no bolso dos servidores, intitulada de zero por cento de reajuste. E o que de fato todos viram foi o conjunto dos sindicatos presos em suas sedes sem nenhuma luta para mobilização das categorias, que pudesse evitar prejuízos tão grandes.
Há de se reconhecer, que mesmo diante de tamanha apatia dos sindicatos, o atual governo tão logo assumiu já reestabeleceu um importante canal de diálogo com os servidores públicos, quando ressuscitou a mesa nacional de negociação e recebeu todos os representantes de servidores e concedeu um reajuste linear de 9% sobre o vencimento básico e subsídios e ainda, aumentou o valor da vale-alimentação de 458 para 658 reais. No entanto, só a abertura de negociação pautada pelo governo não é suficiente para evitar novos ataques que continuam em curso no poder legislativo com a ameaça de votação da PEC 32. É preciso que as entidades representativas busquem se profissionalizar, com pessoas em suas diretorias que sejam capacitadas ao diálogo técnico, político e à luta de verdade. Os servidores e seus sindicatos precisam sair do ar condicionado e ir à luta para afastar mais uma nefasta reforma administrativa, que só trará prejúizo aos servidores e se aprovada será uma grande destruição na prestação dos serviços públicos. Por essas razões esse é o momento das entidades de classe cobrar diuturnamente das autoridades dos poderes executivo, legislativo e judiciário, o respeito e a valorização dos servidores públicos, que são imprescindíveis para o atendimento às demandas da população brasileira.
Carlos Terceiro, Nahoraonline