Culpado!

Porto Velho testemunhou, no final de 2017, um julgamento absolutamente singular

 

Reginaldo Trindade
O dia foi a véspera da Proclamação da República. O palco, um dos cartões postais da cidade.
No banco dos réus não havia um homicida célebre; tampouco alguém que houvesse esfaqueado seu companheiro de copo numa reles briga de bar – coisa tristemente comum no país e, provavelmente, um dos eventos que mais justificam julgamentos populares.
Não. No banco dos réus estava um grande empreendimento e a acusação que pesava não era a de homicídio. Pelo menos não diretamente.
As Usinas do Madeira, que tantas transformações – ruins e boas – trouxeram a Porto Velho e mesmo ao Estado de Rondônia, enfrentaram a sociedade nesse embate genial pensado por algumas boas almas.
O procurador logo se interessou por aquele evento tão diferente. Queria saber como se daria isso. A dinâmica, os argumentos – prós e contras. Quem sabe não poderia, ele próprio, plagiá-lo num futuro não muito distante?
A muito custo foi. Espremendo a agenda mais do que de costume. Não ficou até o final. Saiu na melhor parte: o julgamento em si.
No entanto, pelo pouco que viu já foi muito. Muitíssimo.
“Grande empreendimento quer dizer grande tragédia!”, lascou um dos implacáveis acusadores. Uma mulher, certamente uma ribeirinha, pregava e praguejava contra os carapanãs, cujo aumento exponencial ela tributava à conta do empreendimento. Um religioso fez comparação com o “Belo Monstro do Pará”.
Um festejado advogado da sofrida capital, castigada pela força da raivosa natureza e, mais ainda, pela desmesurada ambição do ser humano, afirmou, com a eloquência de quem vive do falar e do escrever, que as usinas provocaram a divisão do Ibama, “compraram todo mundo!”; provocando o maior desastre ambiental do mundo!
Choveram acusações – cada uma mais cabeluda que a outra. Nenhuma voz em sentido oposto.
Pelo pouco que se conhece de alguns dos organizadores do evento, eles, quando menos, convidaram, quiçá com muita insistência, os consórcios construtores. Não apareceu um só representante. Fosse ao tempo de obter as licenças, trariam até estrangeiros, com seus laptops de última geração e transparências muito bonitas e bem feitas.
Outra ausência sentida foi a da imprensa. Salvo enorme engano, não houve um só veículo tradicional a marcar presença. Que força sobrenatural fez esvair interesse, que já fora tão ávido, por algo tão relevante à cidade e ao Estado?
As acusações eram permeadas por palavras de ordem e de esperança. “A luta que se perde é a luta que se abandona!”.
O último dos depoimentos, proveniente de uma representante do MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens) cuja mãe fora ameaçada e assassinada, lamentou: tem dor que o tempo não cura, não sara. Outro conhecido ativista, que há muito labuta nessa e em tantas outras lutas legítimas, emendou: “Nicinha vive para sempre!”.
As disputas travadas sempre que um grande empreendimento é pensado e executado nem sempre são justas e igualitárias. A disparidade de armas é cruel demais. Ao ensejo da construção das usinas, o Governo do Brasil conseguia cassar liminares em algumas poucas horas – por mais aberrantes que fossem as situações levadas ao conhecimento da Justiça.
No dia do julgamento, por paradoxal que possa parecer, toda-poderosa e senhora de si era a sociedade. Mas, talvez já fosse tarde demais…
As usinas do Madeira tiveram sua construção envolta num emaranhado de situações ainda pouco explicadas – que o digam as delações da Odebrecht, da JBS etc.
Ninguém duvida da relevância do desenvolvimento do país. No entanto, o progresso não há de ser feito à custa do meio ambiente, das populações mais desvalidas, de toda a sociedade.
E nem se trata do dilema “uma árvore ou uma vida”, que uma notória autoridade rondoniense, em evento solene no mesmo palco do ímpar julgamento, proclamou a plenos pulmões há vários anos.
Não há qualquer dilema na equação progresso/meio ambiente. Não são institutos que se contrapõem ou se repilam. Ao revés, um meio ambiente equilibrado e preservado é que permitirá um futuro digno a todos os seres humanos, de hoje e de amanhã.
O julgamento das usinas traduziu um tribunal de exceção para um fato que, infelizmente, não foge à regra. Pelo menos não até agora. Quem sabe o cenário não começa a mudar a partir de janeiro de 2019? Para isso depende do que fizermos em outubro deste ano…
Estamos no caminho. A jornada pode parecer sombria de vez em quando, mas não podemos esmorecer. A luta que se perde é a luta que se abandona.

1 Procurador da República. Responsável, no Estado de Rondônia, pela defesa do Povo Indígena Cinta Larga no período de abril/2004 a dezembro/2017. Pós-Graduado em Direito Constitucional. Membro da Academia Rondoniense de Letras.

Comments (0)
Add Comment