A vida de Freud e sua visão sobre as mulheres- Por Carlos Terceiro
A Teoria da psicanálise contribuiu para compreender a mulher, ampliando o conhecimento sobre os sintomas da histeria. Este trabalho tem o objetivo geral de analisar a contribuição de Freud acerca da mulher. Essa tese de doutorado tem os seguintes objetivos específicos: – Conhecer a origem da Psicanálise e a vida de Freud; Analisar o aparelho psíquico e o método de análise usado por Freud; Conhecer a visão de Freud sobre a mulher, analisando os casos de histeria. A hipótese que norteia este trabalho é que o método das associações livres auxiliou a compreender o motivo dos processos histéricos. A metodologia contribuiu para delimitar os métodos e técnicas, utilizando-se como estratégia de investigação a pesquisa bibliográfica e documental. Enquanto resultados, a pesquisa concluiu que a Teoria da Psicanálise quebrou paradigmas acerca do que se conhecia a respeito do psiquismo humano. Freud, por meio da criação do método investigativo, a análise, auxiliou na compreensão acerca da mulher, pois se passou a entender que esta sofre de histeria motivado por problemas que estão escondidos no inconsciente.
Palavras-chave: Psicanálise; Freud; Histeria; Mulher.
ABSTRACT
The Theory of Psychoanalysis contributed to understanding the woman, increasing the knowledge about the symptoms of hysteria. This work has the general objective of analyzing Freud’s contribution to women. This doctoral thesis has the following specific objectives: – To know the origin of Psychoanalysis and the life of Freud; To analyze the psychic apparatus and the method of analysis used by Freud; To know Freud’s view of women, analyzing cases of hysteria. The hypothesis that guides this work is that the method of free associations helped to understand the reason for hysterical processes. The methodology contributed to limit the methods and techniques, using bibliographical and documentary research as a research strategy. As a result, the research concluded that the Theory of Psychoanalysis broke paradigms about what was known about the human psyche. Freud, by means of the creation of the investigative method, the analysis, helped in the understanding about
the woman, since it was understood that she suffers from hysteria motivated by problems that are hidden in the unconscious.
Keywords: Psychoanalysis; Freud; Hysteria; Woman.
INTRODUÇÃO
A psicanálise é uma teoria que contribui para compreender a mulher. Particularmente, os escritos de Freud ampliaram a compreensão sobre a mulher. Assim, essa tese de doutorado tem o objetivo geral de analisar a contribuição da teoria Freudiana acerca da mulher. A abordagem de Freud sobre o feminino se encontra em vários pontos de sua obra, pois ele discorreu sobre a mulher em quase todos os textos que escreveu.
É interessante apontar que Freud não possui opiniões homogêneas acerca do sexo feminino, abordando conflitos em sua obra. Os estudos sobre a mulher demonstraram que o desenvolvimento social, político e econômico da sociedade contribuiu para que a concepção sobre esta fosse se modificando. Tem-se na Psicanálise uma contribuição para a discussão da mulher, compreendendo as patologias que sofria, dentre as quais a histeria. Por meio da compreensão da histeria e dos processos inconscientes, foi possível analisar os casos, delineando um diagnóstico subjetivo.
Essa tese tem os seguintes objetivos específicos: – Conhecer a origem da Psicanálise, a partir do estudo da vida de Freud; – Analisar a Psicanálise, à luz da compreensão do aparelho psíquico e método de análise usado por Freud; – Conhecer a visão de Freud sobre a mulher por meio da análise clínica dos casos de histeria.
A hipótese que norteia a elaboração dessa tese é que o método das associações livres de Freud auxiliou a compreender o motivo dos processos histéricos que acometiam as mulheres.
A relevância deste trabalho se encontra no sentido de contribuir para a compreensão da mulher na visão da Psicanálise, buscando conhecer as características da histeria, refletindo-se acerca da importância das contribuições de Freud para a humanidade.
A metodologia contribui para a delimitação dos métodos e técnicas que direcionarão a proposta desta pesquisa. A pesquisa qualitativa será de cunho exploratório, utilizando-se como estratégia de investigação a pesquisa bibliográfica e documental.
No primeiro capítulo apresenta-se a introdução. O segundo capítulo trata da biografia de Freud e acerca das concepções sobre a Psicanálise. No terceiro capítulo discutem-se a Psicanálise e o psiquismo, analisando-se o método investigativo de Freud. No quarto capítulo aborda-se a visão de Freud sobre a mulher, discutindo-se os casos de algumas mulheres que desenvolveram a histeria.
Por último, fazem-se as considerações finais.
2 FREUD E A GÊNESE DA PSICANÁLISE
As teorias científicas têm suas origens influenciadas pelos aspectos econômicos, políticos e culturais de determinada sociedade. A respeito destes aspectos que transformam a sociedade, o Renascimento foi um movimento cultural e artístico que aconteceu durante os séculos XV e XVI, que se iniciou na Itália e espalhou-se por outras partes da Europa, transformando a sociedade agrário-mercantil em uma sociedade urbano-manufatureira, gerando a expansão comercial científica e artística. Conforme Bock, Furtado e Teixeira, (2001, p. 45):
O mercantilismo leva à descoberta de novas terras (a América, o caminho para as Índias, a rota do Pacífico), e isto propicia a acumulação de riquezas pelas nações em formação, como França, Itália, Espanha, Inglaterra. Na transição para o capitalismo, começa a emergir uma nova forma de organização econômica e social. Dá-se, também, um processo de valorização do homem.
Infere-se que o Renascimento foi um período de desenvolvimento econômico, político e financeiro que repercutiu, dentre outras questões, sobre as ideias da educação como direito universal.
O filósofo Francês Michel Foucault (1926-1984), em suas pesquisas acerca de como a loucura era concebida no século XVI, época do Renascimento, analisou que o louco:
Vivia solto, errante, expulso das cidades, entregue aos peregrinos e navegantes. O louco era visto como tendo um saber esotérico sobre os homens e o mundo, um saber cósmico que revela verdades secretas. Nessa época, a loucura significava ignorância, ilusão, desregramento de conduta, desvio moral, pois o louco toma o erro como verdade, a mentira como realidade. Neste último sentido, a loucura passaria a ser vista como oposição à razão, esta entendida como instância de verdade e moralidade (FOUCAULT, apud BOCK, FURTADO E TEIXEIRA, 2001, p. 462).
Somente a partir de Pinel (1745 – 1826), a loucura passou a ser concebida como um problema médico-social, transformando-se a ideia de que, ao invés de serem punidos, os loucos deveriam receber tratamento médico, passando pela reeducação moral para, somente depois, serem reinseridos no seio da sociedade. Essa transformação de concepções criou a psiquiatria moderna que estuda e tenta viabilizar a capacidade/incapacidade que os loucos podem ter para serem inseridos na sociedade (FOUCAULT, 2000).
Ainda, a respeito do Renascimento, Oliveira (2002) enfatiza a importância do desenvolvimento econômico para que novas ideias sejam postas em prática, afirmando que: “a expansão comercial e as atividades artísticas ocorridas no período do Renascimento estimularam o surgimento de novas visões sobre a criança e sobre como ela deveria ser educada” (OLIVEIRA, 2002, p. 59).
A Revolução Industrial foi outro período de grande desenvolvimento ocorrido na segunda metade do século XVIII, que deu origem a fábrica e provocou grandes modificações econômicas, políticas e sociais, com profunda transformação nas relações de trabalho, pois houve o predomínio do uso das máquinas e a consagração da ordem burguesa que passou a exigir novos conhecimentos tecnológicos, acarretando a formulação de propostas pedagógicas e exigências educacionais para as futuras gerações da sociedade moderna.
Baseado no exposto anteriormente, se infere que as transformações político-econômico-culturais tanto modificaram as concepções acerca do conhecimento, quanto deram margem para a criação de outras Teorias. A contribuição de algumas teorias serviu para compreender, por exemplo, como a criança se desenvolve.
Jean Piaget (1998), em sua teoria da psicogênese, estabelece os estágios do desenvolvimento cognitivo das crianças. Assim, Piaget (1998), definiu estes estágios em sensório-motor (0 – 2) anos, identificando-se por ser uma fase em que o infante desenvolve a inteligência prática ao agir sobre o meio; estágio pré-operatório (2 – 7) anos, sendo uma fase de egocentrismo; estágio operatório concreto (7 – 12) anos, acontecendo o início do pensamento lógico e o último estágio de desenvolvimento, das operações formais, caracterizando-se pela capacidade de raciocinar sobre hipóteses e ideias abstratas.
Sigmund Freud criou a Teoria da Psicanálise, demonstrando que as fantasias, sonhos, esquecimentos, dentre outros sintomas de ordem psíquica, são problemas científicos que necessitam de uma investigação sistemática. O termo psicanálise, além de se referir a uma teoria, também é utilizado como um método investigativo, o qual se tornou uma prática de cunho profissional. Compara-se a contribuição de Freud com a psicanálise à de Karl Marx, que ajudou a compreender os processos históricos e sociais relacionados ao trabalho. Marx, ao discutir sobre a relação do homem com o trabalho, analisou que “antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza” (MARX, 1988, p.211). Assim, o trabalho é uma ação deliberada sobre a natureza, diferenciando-se das atividades instintivas e mecânicas dos animais.
No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e, portanto, idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação na forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como Lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade (MARX, 1988, p.149-50).
Pressupôs que antes de agir sobre a natureza o homem planeja tais ações. No que diz respeito ao trabalho, afirmou que o modo de produção possui uma dimensão ontológica, de criação de bens e uma dimensão histórica, que determina as formas que o trabalho assumiu durante o desenvolvimento da humanidade, pois:
Até as categorias mais abstratas – precisamente por causa de sua natureza abstrata – apesar de sua validade para todas as épocas, são, contudo, na determinação desta abstração, igualmente produto de condições históricas, e não possuem plena validez senão para estas condições e dentro dos limites destas (…). O desenvolvimento histórico repousa em geral sobre o fato de a última forma considerar as formas passadas como etapas que levam a seu próprio grau de desenvolvimento, e dado que ela raramente é capaz de fazer a sua própria crítica, e isso em condições bem determinadas – concebe-os sempre sob um aspecto unilateral (MARX, 1988, p.120).
Assim, Marx, em sua teoria do capital afirmou que o trabalho possui uma dupla determinação: ontológica e histórica. A histórica se divide nas formas de trabalho escravo, servil e assalariado, fundamentadas nas relações sociais de produção do trabalho. Marx se dedicou a estudar e escrever acerca da teoria do capital e das relações de trabalho e Freud escreveu a Teoria da Psicanálise.
No que diz respeito aos pressupostos teóricos da Psicanálise, estes se caracterizam por apresentar um conjunto de conhecimentos sobre o funcionamento da vida psíquica, de forma sistematizada.
O método de investigação que fundamenta a Psicanálise se baseia em uma interpretação das palavras e do que é produzido pela imaginação (sonhos, delírios, atos falhos), buscando encontrar o significado do que está oculto (BOCK, FURTADO E TEIXEIRA, 2001). Essa questão será aprofundada no próximo capítulo, pois neste próximo tópico se tratará da vida de Freud.
2.1 VIDA DE FREUD: INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA PSICANÁLISE
A família de Freud inicialmente habitava a cidade de Freiberg, contemporaneamente nominada de Pribor, que se situa a noroeste da Morávia, território da Europa Central que corresponde à ex-Tchecoslováquia. De origem judia, a família Freud se caracterizou pelo movimento da Errância[1], o qual obrigou os judeus a mudarem de cidades, tendo em vista as dificuldades econômicas e as perseguições. Enquanto judeus, os Freud não eram exceção se fixando em Freiberg, local em que se instalou uma comunidade judaica que falava o iídiche ou o alemão. Assim, a história da família com a respectiva genealogia do sobrenome Freud tem relação com a saga judaica da Errância. Em sua autobiografia, Freud declarou que durante os séculos XIV ou XV a família de seu pai fugira para o leste, migrando no século XIX para a Lituânia e Galícia, até se fixar em Freiberg. De acordo com Jorge e Ferreira (2010, p. 08):
O nome Freud tem a mesma raiz da palavra freude, que em alemão significa alegria, prazer, regozijo, e se origina de Freid, que é o nome da bisavó materna do pai de Freud. A mudança foi adotada pela família do pai de Freud, em 1789, quando o imperador José II emancipou os judeus, estendendo-lhes os direitos dos cidadãos do Império Austro-húngaro. Seu pai, Kallamon Jacob Freud, filho e neto de rabinos, trabalhava no comércio de lã e se casou com Sally Kanner, sobre cuja vida e condições de morte se sabe muito pouco. Deixou o marido viúvo com dois filhos: Emanuel e Philipp.
Jorge e Ferreira (2010) analisam que algumas biografias a respeito de Freud pressupõem que houve um segundo casamento de Jacob com Rebekka, morta entre 1852 e 1855. Contudo, Freud ignorou esse segundo casamento do pai, que em 1855 se casa com Amalia Nathanson, 20 anos mais nova que o noivo. Jacob e Amalia tiveram oito filhos, sendo três meninos e cinco meninas. Ao descrever as características de Jacob, alguns biógrafos analisam que o ele era um homem simples, de otimismo inveterado, simpático, generoso e bem-humorado. Amalia foi caracterizada como bonita, vaidosa e inteligente, de caráter resoluto e muito inteligente (JORGE e FERREIRA, 2010).
No dia 6 de maio do ano de 1856 nasce o primogênito do casal, o qual recebeu o nome de Schlomo Sigismund, sendo o seu primeiro nome dado em homenagem ao avô paterno falecido. O nome Sigismund foi alterado pelo próprio Freud, passando a assinar Sigmund Freud. “Sem dúvida, Freud foi um filho amado pelo pai e o predileto de sua mãe, que o chamou durante toda sua vida de “meu Sigi de ouro” (JORGE e FERREIRA, 2010, p. 08).
No ano de 1859, por ocasião da guerra austro-italiana, os negócios de Jacob entram em crise, motivado tanto pela guerra, quanto pelo processo industrial, que fez a cidade sofrer com o desemprego e alta da inflação. Ainda, os judeus que falavam a língua alemã passaram a ser hostilizados pelos tchecos, obrigando a família Freud a se mudar para Leipzig – Alemanha. Desde então, se originaram as dificuldades financeiras da família.
No ano de 1860, a família Freud se instala em Leopoldstadt, Viena. Em sua autobiografia, Freud declarou que ingressou na Universidade de Viena para cursar medicina com apenas 17 anos de idade, tendo se tornado o primeiro aluno de sua turma, o que o fez, segundo o mesmo, desfrutar de alguns privilégios considerados especiais por este. Freud falava os idiomas Francês e Inglês, dominando de forma satisfatória o latim, o grego e o hebreu, sendo profundo conhecedor do espanhol e italiano (JORGE e FERREIRA, 2010). No curso de medicina, este tinha que frequentar cerca de 30 horas semanais, divididas em aulas práticas e teóricas.
Segundo Jorge e Ferreira (2010), Freud se identifica com a biologia e a zoologia, cujo professor, Ernst Wilhelm von Brucke, dirigia um laboratório de pesquisa e anos mais tarde, em 1876, oferece-lhe uma bolsa de estudos. Aprimorando-se em seus estudos biológicos, Freud desenvolve uma pesquisa cujo tema era as glândulas sexuais das enguias. Sua atuação neste laboratório foi tão comemorada pelo próprio Freud que ele descreve na obra Um estudo autobiográfico:
Por fim, no laboratório de fisiologia de Ernst Brucke encontrei tranquilidade e satisfação plena — e também homens que pude respeitar e tomar como meus modelos: o próprio grande Brucke e seus assistentes, Sigmund Exner e Ernst Fleischl von Marxow (FREUD apud JORGE e FERREIRA, 2010, p. 10).
No ano de 1880, presta exames para medicina, se formando médico no ano seguinte, com menção honrosa.
Dois anos depois, em 1882, conhece Martha Bernays, apaixonando-se perdidamente, querendo casar com a mesma. Em virtude das dificuldades financeiras que tinha à época, as quais não permitiam que casasse imediatamente, Freud deixa a carreira de pesquisador, saindo do laboratório de Brücke para trabalhar no Hospital Geral de Viena como médico clínico geral. Não obstante, não gostava do trabalho no tal hospital, transferindo-se no ano seguinte para o setor de psiquiatria. Acerca dessa fase de sua vida, em sua autobiografia, Freud assevera que “Tornei-me tão atuante no Instituto de Anatomia Cerebral quanto o havia sido no de fisiologia” (JORGE e FERREIRA, 2010, p. 10). Ainda no ano de 1882, o médico Breuer, amigo particular de Freud, lhe relata sobre a paciente Anna O. (Bertha Pappenheim), descrevendo sobre o tratamento que estava fazendo com tal paciente.
Eles travaram conhecimento no início da década de 1880, sendo que Breuer lhe relatara alguns de seus casos, entre eles, aquele que seria o marco inicial da Psicanálise, o caso Anna O.. Breuer dissera a Freud como lidara com o caso dessa jovem histérica, cujo impacto da doença do pai e os cuidados dispensados a ele a haviam esgotado, de maneira a precipitar fortes sintomas corporais. Utilizando a sugestão hipnótica, Breuer a tratara, aliviando-a de seu sofrimento e descobrindo o poder de cura pela palavra (REVISTA CIENTÍFICA ELETRÔNICA DE PSICOLOGIA, 2009, p. 05).
Durante sua estadia no Hospital Geral de Viena, Freud deu início à pesquisa sobre as propriedades da cocaína e seus efeitos terapêuticos. Esta substância tinha sido introduzida nos Estados Unidos e na Europa sem restrições, tendo Freud se entusiasmado pelo seu uso, passando tanto a usá-la, quanto a receitá-la como “estimulante, para os distúrbios digestivos, para combater os vícios da morfina e do álcool e para o tratamento da asma e dos estados depressivos” (JORGE e FERREIRA, 2010, p. 10).
Salienta-se que a cocaína, nesta época, não tinha o sentido etimológico que hoje se dá à palavra, ou seja, de droga. Pois, conforme o Dicionário Michaelis, a droga “é o termo genérico para qualquer substância alucinógena, entorpecente, cujo uso, além de alterar o humor e o comportamento, pode levar à dependência e à tolerância “(MICHAELIS, 2016). Assim, nessa época, a cocaína era utilizada como medicamento para dar energia ao corpo, aliviar a sinusite e a febre, como também para o tratamento de viciados em ópio, morfina e bebidas alcoólicas, sendo usado como ingrediente em bebidas como o vinho.
Segundo Jorge e Ferreira (2010), a companhia Parke Davis negociava cigarros e charutos feito com folha de coca, lançando a bebida Coca Cordial, além de produtos que eram usados em injeções subcutâneas, unguentos e vaporizadores. Nesse mesmo período, Freud escreveu um ensaio sobre o uso da cocaína como anestésico, cujo título foi Uber Coca. Em tal ensaio, o médico vienense fazia alusão ao efeito anestésico da cocaína, quando aplicada em solução concentrada na pele e na mucosa.
O médico oftalmologista Koller leu o artigo de Freud, influenciando-o a iniciar testes com a cocaína, a qual era inoculada nos olhos de rãs, coelhos e cachorros. Koller foi tão influenciado pelos escritos de Freud sobre a cocaína, que escreveu uma Comunicação preliminar a esse respeito, apresentando-a no Congresso Oftalmológico de Heildelberg. De acordo com Koller (apud JORGE e FERREIRA, 2010, p. 11) “a cocaína foi competentemente trazida ao conhecimento dos médicos vienenses pela minuciosa compilação e pelo interessante ensaio terapêutico do meu colega de hospital Dr. Sigmund Freud.”
Destaca-se que Koller ficou conhecido na história como o pai da anestesia local e a experiência relatada em seu ensaio se tornou importante para as microcirurgias oculares. Pressupõe-se, baseado em (JORGE e FERREIRA, 2010), que Freud não levou adiante sua pesquisa sobre os efeitos anestésicos da cocaína porque fazia dois anos que não via Martha, pois esta residia não residia em Viena. Para poder visitá-la o mais rápido possível, Freud encerra a pesquisa sobre as propriedades da cocaína e seus efeitos terapêuticos, escrevendo uma monografia sobre tal temática.
Posteriormente, foi beneficiado com uma bolsa de estudo para trabalhar no Hospital Salpêtrière, em Paris, local aonde trabalhava o neurologista Jean Martin Charcot. Charcot, objetivando esclarecer que a histeria era uma doença de origem nervosa que obedece a leis, não sendo produto de uma simulação, recorria à hipnose. A convivência com Charcot o levou a se interessar pelos problemas de ordem histeria. Nesta época, a histeria se caracterizava como um enigma, pois os sintomas histéricos não se enquadravam nas patologias que tinham sido identificadas anteriormente.
As demonstrações clínicas de Charcot impactaram Freud de tal maneira que este, como Charcot, sempre questionou as teorias, enfatizando a prática clínica. Retornando de Paris, Freud se estabelece como médico na cidade de Viena. Se apresenta como médico especialista em doenças nervosas, traduzindo para o alemão dois livros do mestre Charcot: Leçons sur les maladies du système nerveux (Lições sobre as doenças do sistema nervoso) e Leçons du mardi (Lições de terça-feira), publicados em 1886 e 1894 (JORGE e FERREIRA, 2010).
Instigado pelas pesquisas de Charcot, Freud cria as bases da teoria sobre a etiologia sexual das neuroses. No trabalho no hospital, às vezes acompanhava Charcot para ouvir os relatos das pacientes histéricas, que eram submetidas a experimentos de hipnose. No livro Freud Além da Alma consta que Freud interna uma paciente com histeria, considerada uma doença emocional de origem psíquica.
Charcot pensava a histeria como uma doença produzida por uma representação carregada intensamente de afeto, sendo que a força deste se transpunha para o corpo; daí a formação do sintoma somático. Assim, demonstrava e provava sua ideia produzindo sintomas através da sugestão hipnótica (REVISTA CIENTÍFICA ELETRÔNICA DE PSICOLOGIA, 2009, p. 04).
Freud, baseando-se nas ideias de Charcot, em colaboração com o médico Breuer, inicia as pesquisas sobre os mecanismos psíquicos da histeria, postulando em sua teoria acerca da etiologia sexual das neuroses, que a neurose possuía causas reprimidas. Por meio de seus estudos, inicia a prática da psicanálise. De acordo com Jorge e Ferreira (2010), os estudos acerca da histeria fundamentaram o nascimento da psicanálise, pois os sintomas e queixas histéricas apontavam para a sexualidade. Assim, segundo Jorge e Ferreira, (2010):
A indagação fundamental da histeria — “Sou homem ou mulher? ” — iria levar Freud, muito mais tarde, à descoberta de que não há a inscrição da diferença sexual no inconsciente. Este fator é o responsável pela bissexualidade constitucional do sujeito. Já a tradução feita pelo neurótico obsessivo dessa mesma indação é: “Qual o sexo do meu objeto — masculino ou feminino? ” (JORGE e FERREIRA, 2010, p. 12).
Freud se dedicou à Psicanálise, teoria que será analisada no próximo capítulo a partir da discussão dos seus pressupostos teóricos e princípios científicos, destacando-se a visão de Freud sobre as mulheres.
3 FREUD E A PSICANÁLISE: ABRINDO A CAIXA PRETA
A Psicanálise é considerada uma tendência teórica da Psicologia, existindo também outras teorias, dentre as quais o Behaviorismo S-R, (Stimuli-Respond) e a Gestalt. O Behaviorismo, criado por Watson, possui aplicações práticas, destacando-se por ter definido o fato psicológico por meio da concepção de comportamento (behavior).
A Gestalt cria-se postulando compreender o homem enquanto um ser holístico.
A Psicanálise, que será aprofundada neste trabalho em tela, foi criada por Freud, na Áustria, recuperando para a Psicologia a importância da afetividade, postulando o inconsciente como objeto de estudo (BOCK, FURTADO e TEIXEIRA, 2001).
Enquanto teoria, a Psicanálise se caracteriza por conter um conjunto de conhecimentos sistematizados que dizem respeito à vida psíquica. O método de investigação que fundamenta a Psicanálise caracteriza-se por possuir uma forma interpretativa, buscando compreender o significado oculto do que está representado por meio de ações, palavras ou produções imaginárias. Classificam-se como produções imaginárias, os sonhos, delírios, as associações livres, os atos falhos (BOCK, FURTADO e TEIXEIRA, 2001).
A análise busca o autoconhecimento, reconhecendo-se a cura por meio desse autoconhecimento. No trato com seus pacientes, em sua metodologia de atendimento, Freud os deixa à vontade para expor livremente suas ideias, observando que estes se sentiam com vergonha ao relatar sonhos e imagens. Assim, nominou de resistência a oposição em tornar consciente o pensamento. Nominou de repressão o processo psíquico que tem por objetivo encobrir as ideias, fazendo desaparecer a representação da consciência, pois esta é dolorosa. Tais conteúdos de ordem psíquica se encontram no inconsciente. Segundo Freud (apud BOCK, FURTADO e TEIXEIRA, 2001, p. 95) as descobertas acerca do inconsciente:
(…) constituíram a base principal da compreensão das neuroses e impuseram uma modificação do trabalho terapêutico. Seu objetivo (…) era descobrir as repressões e suprimi-las através de um juízo que aceitasse ou condenasse definitivamente o excluído pela repressão. Considerando este novo estado de coisas, dei ao método de investigação e cura resultante o nome de psicanálise em substituição ao de catártico.
Freud preocupou-se em entender a causa que fazia os pacientes esquecerem os fatos de sua vida, tanto interior, quanto exterior. Analisou que esse fato esquecido era penoso para os indivíduos, tendo sido esse o motivo de tal esquecimento. De acordo com Bock, Furtado e Teixeira, (2001), no livro intitulado A interpretação dos sonhos, Freud discorreu sobre as concepções acerca da estrutura e o funcionamento da personalidade. Na teoria sobre a Psicanálise, apresentou a concepção de que o aparelho psíquico se divide em inconsciente, pré-consciente e consciente.
O conceito de inconsciente diz respeito ao conjunto de conteúdos reprimidos que não se fazem presentes no campo da consciência. Tais conteúdos reprimidos não estão acessíveis pelos sistemas pré-consciente e consciente, pois são crivados por censuras internas. Conforme Macedo e Dockhorn (2015, p. 84) “[…] a Psicanálise aponta a existência do Inconsciente e, com ele, a compreensão de o homem ser mais que consciência e funções cognitivas básicas”.
O pré-consciente é concebido como o sistema, cujos conteúdos permanecem acessíveis ao consciente em algum momento.
O consciente é o sistema que recebe tanto as informações do mundo exterior, quanto do mundo interior, apresentando-se a percepção acerca deste mundo, como também a atenção e o raciocínio (BOCK, FURTADO e TEIXEIRA, 2001).
Nos postulados teóricos de Freud, este compreendeu que as cenas relatadas por seus pacientes tinham ocorrido, descobrindo depois que eram imaginadas, mas repercutiam psicologicamente com a mesma força e consequência de uma situação vivida na realidade. Neste contexto, Freud entendeu que a realidade psíquica possui para o indivíduo um valor real, mesmo que não corresponda à realidade de forma objetiva. Assim, o funcionamento psíquico se concebe embasado em três pontos de vista: a concepção do ponto de vista econômico afirma que existe uma energia que alimenta os processos psíquicos.
Sob o ponto de vista tópico, analisa-se que o aparelho psíquico se constitui por um número de sistemas que se diferenciam quanto à natureza e o modo como funcionam, ou seja, representam um lugar psíquico.
Conforme o ponto de vista dinâmico, existem forças em conflito no interior do psiquismo. Tais forças estão ativas e se originam por meio da pulsão, que representa um estado de tensão que busca no objeto suprimir este estado. Nesta pulsão existem o Eros e o Tanato. O Eros significa a pulsão de vida, abrangendo as pulsões sexuais e as de auto conservação. Tanatos é a pulsão de morte, autodestrutiva, manifestando-se como pulsão agressiva.
Na psicanálise, o sintoma pode aparecer sob a forma de uma produção, um comportamento ou um pensamento, que resulta de um conflito psíquico entre o desejo e os mecanismos de defesa, sinalizando ou encobrindo um conflito, substituindo a satisfação do desejo. Estes sintomas servem como ponto de partida da investigação na psicanálise.
Freud, investigando as causas e o funcionamento das neuroses, descobriu que os desejos e pensamentos reprimidos possuíam uma causa sexual que se localizava nos primeiros anos de vida. Estas experiências traumáticas ficam reprimidas, originando os sintomas da neurose, pois deixam marcas na estruturação do indivíduo. Freud descobriu que a sexualidade se encontra no centro da vida psíquica, esclarecendo que a função sexual existe desde o início da vida, contrariando os teóricos que afirmavam somente existir sexualidade a partir da puberdade.
Destacou que o período da sexualidade se desenvolve de forma longa e complexa, sendo a idade adulta a fase da reprodução e de obtenção de prazer sexual para o homem e para a mulher. Estas ideias de Freud contrariavam as ideias da época de que o sexo se associava somente à reprodução.
A esse respeito, Macedo e Dockhorn (2015, p. 84) analisam que:
A afirmação da existência de um sujeito de Inconsciente e de Sexualidade, o qual não se adapta, na ética de usa existência, às determinações de pressupostos regidos pela verificação, pela objetividade ou pela replicabilidade de situações, impõe a Freud a necessidade de buscar um rumo próprio e original na complexidade inerente ao processo de investigação da Psicanálise.
Compreende-se, assim, que a criação de Freud, ou seja, a psicanálise rompe com a epistemologia, perturbando a concepção de homem e de subjetividade, pois:
Em Freud a noção de sujeito não se confunde com aquele Eu moderno, que havia sido instalado como mestre em sua própria casa. O Eu de Freud é descentrado, do mesmo modo como a Terra de Galileu e o Homem de Darwin (KUPFER, 2010, p. 268).
Assim, a Psicanálise se cria no cenário da ciência do século XIX, onde predominava a razão científica. De acordo com Birman (1994), no século XIX, a Física era considerada o modelo ideal da ciência, tendo em vista os seus procedimentos experimentais e a linguagem matematizada que caracterizava os discursos científicos.
Contraditoriamente à visão que se tinha da Física, a concepção sobre a Filosofia praticava o discurso metafísico, desvinculando-se das exigências científicas de elaboração fidedigna dos dados vinculados à empiria.
Ao se reconhecer a Psicanálise enquanto uma disciplina de cunho científico, Freud se distancia do discurso metafísico da Filosofia. Assim, o espírito investigativo de Freud se desenvolvia:
Nas pesquisas a respeito das experiências ocorridas no cenário da clínica que lhe impuseram, por exemplo, o reconhecimento da diferença crucial entre a recordação de um fato real e os conteúdos originários das cenas fantasmáticas próprias ao desejo e à sexualidade infantil (MACEDO e DOCKHORN, 2015, p. 83).
Freud descobriu que o indivíduo se desenvolve por meio de um processo nominado de psicossexual, cuja função está interligada à sobrevivência, encontrando prazer no próprio corpo. Pois, neste corpo é que se encontra as excitações sexuais, levando Freud a postular as seguintes fases para o desenvolvimento sexual:
– Fase oral (a zona de erotização é a boca);
– Fase anal (a zona de erotização é o ânus);
– Fase fálica (a zona de erotização é o órgão sexual) (BOCK, FURTADO e TEIXEIRA, 2001, p. 97).
De acordo com Freud (apud BOCK, FURTADO e TEIXEIRA, 2001, p. 97), após essas fases citadas anteriormente, aparece o período de latência, o qual se prolonga até a puberdade, se caracterizando pela diminuição das atividades relacionadas ao sexo. Exatamente na puberdade se encontra a última fase do desenvolvimento sexual: a fase genital. Esta fase se caracteriza pela concepção de que o objeto de desejo não se encontra no próprio corpo, mas externamente ao indivíduo.
Preuschoff (2003) enfatiza que a ciência ainda não obteve resultados concretos em relação aos fatores que desencadeiam o início da puberdade, como também os que denotam as transformações corporais. As alterações físicas e corporais são universais até certo ponto, descartando algumas diferenças. Porém, o que ocorre no nível psicológico da relação do ser com o ambiente tem a ver com as diferenças culturas, os diferentes grupos sociais e os indivíduos que se inserem num mesmo grupo.
Becker (2003), analisa que o adolescente tem a necessidade de se inserir em algum grupo, o qual o impulsionará a buscar sua identidade no contexto da conjuntura social. De acordo com a psicanálise, o grupo funciona como um suplente dos pais, que ajuda o adolescente a compreender as aflições, servindo como um companheiro. Conforme Becker, (2003, p.96) “O adolescente não é o futuro da pátria, nem a esperança do amanhã. Seu lugar é aqui, seu tempo é o presente, e sua vida lhe pertence para vivê-la da maneira que escolher”.
No decorrer das fases de desenvolvimento sexual, ocorrem vários eventos, dentre os quais, o complexo de Édipo, o qual é responsável pela estruturação da personalidade do indivíduo. De acordo com Bock, Furtado e Teixeira (2001 p. 97-98) o complexo de édipo:
Acontece entre 3 e 5 anos, durante a fase fálica. No complexo de Édipo, a mãe é o objeto de desejo do menino, e o pai é o rival que impede seu acesso ao objeto desejado. Ele procura então ser o pai para “ter” a mãe, escolhendo-o como modelo de comportamento, passando a internalizar as regras e as normas sociais representadas e impostas pela autoridade paterna. Posteriormente, por medo da perda do amor do pai, “desiste” da mãe, isto é, a mãe é “trocada” pela riqueza do mundo social e cultural, e o garoto pode, então, participar do mundo social, pois tem suas regras básicas internalizadas através da identificação com o pai.
Baseado no exposto anteriormente infere-se que Freud foi construindo um arcabouço teórico-científico fundamentado em hipóteses conceituais que permitiram a construção do conhecimento acerca dos processos de ordem psíquica e das patologias que acometiam seus pacientes. No próximo tópico se abordará
3.1 O APARELHO PSÍQUICO: CONCEPÇÕES TEÓRICAS
Freud, em sua teoria do aparelho psíquico introduz os conceitos de id, ego e superego. Estes conceitos dizem respeito ao sistema da personalidade. Freud apud Bock, Furtado e Teixeira (2001), afirma que o id se constitui enquanto um reservatório da energia de ordem psíquica, lócus das pulsões de vida e de morte. O id é regido pelo prazer.
O ego é o responsável por equilibrar as exigências do id com as exigências da realidade e as ordens advindas do superego, regulando e alterando o princípio do prazer para conseguir a satisfação, possuindo as seguintes funções: percepção, memória, sentimentos e pensamento.
No que diz respeito ao superego, este se origina do complexo de Édipo, por meio da internalização das proibições, dos limites e da autoridade. O superego tem as funções de regular a moral e os ideais, baseado nas exigências sociais e culturais.
Perceber um acontecimento do mundo externo ou interno às vezes constrange e causa dor, assim, para evitar se envolver nesta ação dolorosa, os indivíduos suprimem a realidade, deixando de registrar as percepções externas. Desta forma, afastam conteúdos psíquicos particulares que causam interferência no pensamento. Freud nomina essa supressão de mecanismo de defesa. Este mecanismo de defesa é realizado pelo ego, sendo inconsciente, ou seja, independente da vontade. Acredita-se que o ego exclui da consciência os conteúdos que são classificados como indesejáveis porque está protegendo, dessa forma, o aparelho psíquico. Ademais, o ego é responsável por desvelar a realidade e, ao mesmo tempo, defender o psiquismo por meio dos mecanismos, os quais são capazes de suprimir e dissimular a percepção do perigo interno em função dos perigos reais ou de fundo imaginário que se localizam no mundo externo. Estes mecanismos de defesa se dividem em:
– Recalque: responsável por suprimir uma parte da realidade, não sendo percebido pelo indivíduo, prejudicando o sentido do todo, pois ao tornar-se invisível, altera e deforma a visão holística.
– Formação Reativa: diz respeito ao afastamento do desejo em determinada situação. O ego é responsável por realizar essa ação, afastando desejos agressivos e transformando-os em atitudes de ternura e superproteção. Contudo, ressalta-se que tais desejos de carinho podem esconder o seu oposto, ou seja, a verdadeira motivação, preservando os indivíduos de descobrirem acerca de si mesmos.
– Regressão: este mecanismo de defesa se apresenta quando o indivíduo retorna a etapas anteriores de seu desenvolvimento, agindo de forma primitiva.
– Projeção: se apresenta sob a forma de distorções do mundo externo e interno.
– Racionalização: é o mecanismo de defesa que o indivíduo constrói um argumento que convence de forma intelectual, justificando estados deformados da consciência. Seria a razão a serviço do irracional, cujo material é fornecido pela própria cultura. “Dois exemplos: o pudor excessivo (formação reativa), justificado com argumentos morais; e as justificativas ideológicas para os impulsos destrutivos que eclodem na guerra, no preconceito e na defesa da pena de morte” (FREUD apud BOCK, FURTADO e TEIXEIRA, 2001, p. 103).
O ego possui outros mecanismos de defesa, dentre os quais: denegação, identificação, isolamento, anulação retroativa, inversão e retorno sobre si mesmo. Segundo Bock, Furtado e Teixeira (2001) é comum o uso pelos indivíduos destes mecanismos de defesa, pois eles deformam a realidade para defender dos perigos que são reais ou fruto da imaginação, podendo ser tanto internos quanto externos. Tais mecanismos não são classificados enquanto uma patologia, mas são responsáveis por distorcer a realidade e somente o seu desvendamento poderá possibilitar a superação da falsa consciência, vendo a realidade como ela realmente é. No próximo tópico aborda-se o método que se usa na psicanálise.
3.2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E PRINCÍPIOS DO MÉTODO PSICANALÍTICO
Freud, conforme foi abordado anteriormente, construiu sua teoria fundamentando-se em seus atendimentos clínicos. Depois de fazer os atendimentos em sua clínica, Freud relatava o caso, não apenas descrevendo-o, mas analisando-o e interpretando-o. Assim, construiu a teoria da Psicanálise ao analisar os depoimentos dos seus pacientes, ou seja, analisando os fragmentos de lembranças destes e fazendo associações que não aparentavam possuir sentido, Freud foi interpretando os discursos e realizando as inferências sobre o que não era dito nas sessões.
A esse respeito, D’Agord analisa que:
A construção teórica de Freud originou-se, sem dúvida, das ficções que ele elaborou a partir da sua escuta dos pacientes em análise. (…) Uma construção em análise é o procedimento de extrair inferências a partir de fragmentos de lembranças e de associações do sujeito em análise. Esses fragmentos de lembranças não têm sentido em si mesmos, mas é justamente desse sem-sentido que eles ex- traem a sua importância na construção de hipóteses (D’Agord, 2000/2001, p. 13).
Baseado no exposto anteriormente, infere-se que o Estudo de Caso na psicanálise se imbrica à experiência clínica, pois inicialmente acontece o atendimento clínico para depois ser construído o sentido do que ocorreu clinicamente em relação ao caso narrado pelo paciente.
No texto intitulado Psicanálise e Teoria da libido, Freud conceitua a Psicanálise como:
1) um método para a investigação dos processos mentais, que são quase inacessíveis por qualquer outro modo; 2) de um método (baseado nesta investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos; 3) e uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas e que, gradualmente, se acumula numa nova disciplina científica (FREUD, 1923[1922]/1974, p.287).
Ao definir a Psicanálise, Freud destaca que ela é um método de investigação dos processos psíquicos inconscientes. No cenário da análise, a eficácia deste método foi investigar o inconsciente. O percurso de evolução do método investigativo teve início com o método catártico de Breuer.
Breuer denominou método catártico o tratamento que oportuniza a possibilidade de liberar os afetos e as emoções que estão interligados aos acontecimentos que envolvem traumas. Tais emoções não puderam ser vividas ou expressas quando houve a vivência do fato desagradável ou doloroso. Assim, liberando os afetos se eliminam os sintomas.
Conforme Mezan (apud BOCK, FURTADO e TEIXEIRA, 2001, p.94):
aos poucos, foi modificando a técnica de Breuer: abandonou a hipnose, porque nem todos os pacientes se prestavam a ser hipnotizados; desenvolveu a técnica de concentração, na qual a rememoração sistemática era feita por meio da conversação normal; e por fim, acatando a sugestão (de uma jovem) anônima, abandonou as perguntas — e com elas a direção da sessão — para se confiar por completo à fala desordenada do paciente.
Assim, Freud, aos poucos, foi definindo as linhas essenciais do seu método de investigar o inconsciente. Ressalta-se que ao construir a teoria psicanalítica por meio da escuta na experiência clínica, Freud criou um novo espaço epistemológico, construindo um novo modelo de inteligibilidade e uma nova forma de saber, quebrando os paradigmas de seu tempo. Este modelo de inteligibilidade denota a modalidade do não saber, criado na e pela experiência analítica. Assim, Freud foi construindo as associações livres, regra basilar do método analítico, contrapondo-se à escuta livremente flutuante do analista. Tal modelo de inteligibilidade e de saber não saber, foi criado na relação que se viveu no espaço da análise entre o analisando e o analista. Esta relação consagrada pela técnica psicanalítica foi nominada de Transferência, Übertragung (ROCHA, 2008).
Pois na experiência analítica, coexistem dois polos constitutivos da experiência humana, onde se tem, de um lado, os objetos que foram marcados pelo selo do desejo inconsciente, vindo a serem descobertos pelo método. Do outro lado se tem a palavra que significa e (re) significa, na dinâmica da transferência, as experiências passadas, as quais representam a base dos conflitos que geram os distúrbios psíquicos. Essencialmente, a experiência analítica é uma experiência de linguagem específica da experiência de análise, pois é a palavra que desvela os desejos e fantasias que estão no inconsciente. A linguagem é a base da experiência analítica na medida em que no diálogo analítico, o sujeito conhece a si mesmo, construindo e se (re) construindo na tentativa de tornar-se a ser o que realmente é, mas se encontra escondido (ROCHA, 2008).
O método das associações livres faz com que o sujeito que está sendo analisado diga o que lhe vier à cabeça, sem levar em consideração a censura e sem fazer escolha premeditada daquilo que pretende dizer, não buscando razões lógicas que ordenem a desordem espontânea de sua fala livre. Outrossim, os sujeitos não levam em consideração as exigências das etiquetas sociais, nem tampouco a censura da sua consciência moral, liberando os pensamentos de suas intenções conscientes em torno de pontos de atração inconscientes.
Buscando que os pacientes realmente falassem abertamente e livremente, Freud criou um espaço de análise, um lócus onde se encontra o divã para o paciente se deitar ou sentar e a poltrona do analista. Neste lócus, particularmente, se evita o face-a-face no diálogo terapêutico, deixando livre o espaço da análise com o objetivo de que a linguagem do inconsciente se manifeste para que seja possível fazer as associações livres (ROCHA, 2008).
No divã, o analisando pronuncia o seu discurso na presença do analista, o qual – como suporte imaginário – além de substituir as pessoas que foram de grande importância na vida do analisando e fazem parte da história de seus conflitos, se torna uma referência essencial para que o analisando seja reconhecido enquanto sujeito.
Na dinâmica desse jogo nominado de transferencial, onde o analisando trabalha as palavras do analista, este as atravessa em todos os sentidos. A este trabalho do analisando, “Freud deu o nome de Durcharbeitung, perlaboração, essência do trabalho analítico” (FREUD, 1914/1982, p.205-206).
Ao interpretar o que diz o sujeito que está sendo analisado, o analista lhe empresta suas palavras para seja possível que este assuma o seu discurso, fazendo suas próprias descobertas no campo da análise. Ao encontrar sentido nas palavras que, consequentemente, dão sentido às mensagens enigmáticas inscritas em seu inconsciente, se nomina os sentimentos angustiantes que permaneciam inomináveis. Na medida em que é capaz de assumir seus desejos e enquanto sujeito desses desejos, a análise pode possibilitar aos sujeitos a experiência de libertação.
Ao analisar a experiência analítica, Freud afirma que esta é libertadora, pois:
todo tratamento psicanalítico [Jede psychoanalytische Behandlung] é uma tentativa [ist ein Versuch] para libertar [zu befreien] o amor recalcado [die verdrängte Liebe], que encontrou no sintoma a incômoda solução de um compromisso [die in einem Symptom einen kümmerlichen Kompromissausweg gefunden hatte] (FREUD, 1907/1982, p.80).
Freud enfatiza que o objetivo da análise é tentar dar ao homem a liberdade para amar, trabalhar e construir sua existência. O homem diferencia-se dos outros seres da natureza pela capacidade de ser sujeito de sua própria história.
Na concepção que Vygotsky (apud Oliveira, 1998) tem do ser humano, a inserção deste num determinado ambiente cultural é parte essencial de sua própria constituição enquanto sujeito. É impossível pensar o ser humano privado de contato com um grupo cultural que lhe fornecerá instrumentos e signos que possibilitarão o desenvolvimento das atividades psicológicas mediadas. O desenvolvimento da espécie humana e do indivíduo está baseado no aprendizado que para Vygotsky sempre envolve interferência, direta ou indireta, de outros indivíduos e a reconstrução pessoal da experiência e dos significados.
Contudo, apesar de ter liberdade para construir a sua história, o homem pode ser escravo de forças que nascem dentro dele, sem que disto tenha consciência. Assim, a psicanálise serve para libertá-lo, procurando livrar o homem dos grilhões que ele mesmo fabrica e se impõe no desenvolvimento de sua história (ROCHA, 2008).
4 A MULHER NA VISÃO DE FREUD: A ETIOLOGIA DA HISTERIA
Historicamente, as funções que eram delegadas às mulheres se associavam à natureza, ou seja, a mulher ficava restrita aos cuidados com a geração dos filhos e a educação destes, enquanto que ao homem cabia o sustento do lar, a participação em atividades políticas, culturais e sociais.
No Brasil, durante os séculos XIX e XX, a educação destinada às mulheres de classes abastadas era direcionada ao exercício de papéis domésticos (esposa, mãe, dona de casa). Assim, as mulheres cuidavam da orientação dos filhos, cozinha, criados ou faziam trabalhos de bordar e costurar.
Segundo Falci (2001, p.242) a sociedade patriarcal era:
Altamente estratificada entre homens e mulheres, entre ricos e pobres, (…) hierarquias rígidas, gradações reconhecidas: em primeiro lugar e acima de tudo o homem, o fazendeiro, o político local ou provincial, o culto pelo grau de doutor, (…).
A esse respeito, infere-se que as diferenças entre homens e mulheres expressavam uma sociedade estratificada, com fundamentação patriarcal, hierarquia rígida e papéis sociais definidos em relação aos gêneros. Nesta sociedade, as relações de cunho social eram marcadas pelos princípios materiais, reconhecendo-se o status social, o que repercutia na prática de casamentos arranjados entre as famílias consideradas abastadas. Neste contexto, as moças contraiam matrimônio entre os 12 e 18 anos de idade, tendo em vista não ficar à margem da função social que estava destinada a estas, ou seja, ser mãe, esposa e dona de casa.
Coutinho analisa que (1994, p.82), ”o casamento coloca-se quase que como a única possibilidade de carreira aberta à mulher. Permanecer solteira, além de pouco atraente e financeiramente inviável, implicava um desprestígio para a mulher”.
Neste cenário, a mulher que não contraísse matrimônio ficaria na casa de seus pais e para se obtiver o tal matrimônio, a virgindade deveria ser preservada, pois não sendo mais virgem seria desprezada pela família, sofrendo castigos físicos ou a expulsão de casa. Assim, a sociedade a excluía do convívio social, porque não soube cuidar da imagem padronizada e aceita pelas normas e conceitos morais da época.
Além dos autores citados anteriormente (FALCI, 2001; COUTINHO, 1994), outros autores estudaram as concepções acerca da mulher e sua feminilidade. A psicanálise foi uma teoria que contribuiu com a discussão sobre a mulher. Especificamente, Freud aborda o tema mulher tanto de forma direta quanto de forma indireta. Por meio da psicanálise, foi possível compreender a histeria e os processos inconscientes. O tópico seguinte analisará as concepções de Freud sobre a histeria.
4.1 A ETIOLOGIA DA HISTERIA
Freud aborda a mulher em sua teoria desde a escrita da obra intitulada Os estudos sobre histeria (FREUD, 1892-1895), descrevendo e detalhando os casos femininos, delineando a posição que as mulheres ocupam no seio da sociedade, definida em função de uma estrutura familiar.
Freud, na Conferência XXXIII (FREUD, 1932) analisa que a feminilidade é um campo de mistérios, acessível a poetas e artistas.
Birman (2001) afirma que a teoria Freudiana sobre a mulher pode ser dividida em dois momentos.
O primeiro momento se caracteriza pelo desenvolvimento da obra intitulada Os estudos sobre a histeria (FREUD, 1892-1895). Esta obra marca o início da trajetória da psicanálise.
O segundo momento se destaca quando Freud fala sobre a feminilidade e a sexualidade feminina, desvelando a teoria sobre o Complexo de Édipo, onde acontece a escolha do objeto e a relação que se terá com o mesmo. Este momento caracteriza a inveja do pênis, onde a beleza e a sedução são utilizadas para superar a inferioridade fálica.
É fato que a mulher sempre foi um interesse na obra de Freud, analisando a histeria, os fenômenos sobre a sexualidade e outras patologias.
Nas primeiras publicações de Freud, se encontram textos que discorrem sobre os sintomas da patologia histérica. No texto de título Histeria, (FREUD, 1888), Freud trabalha a definição e a origem histórica desta patologia. Inicialmente, resgatando o sentido semântico do termo histeria, elucida-se que esta palavra tem relação com o útero, pois este se vincula ao aparelho feminino.
Freud (apud Birman, 2001) elucida que, na Idade Medieval, a histeria estava vinculada ao aparelho feminino, ligando-se à possessão e à feitiçaria, tendo como sintomas os ataques de origem convulsiva, as paralisias musculares e as contraturas. Freud tentava associar a etiologia genética desta patologia com a sexualidade, embora tentasse esclarecer que a histeria não estava determinada por distúrbios de ordem sexual.
Assim, Freud possibilita tratamento médico às histéricas, enfatizando que a probabilidade de as mulheres apresentarem a histeria é maior do que os homens, embora deixasse claro que os diagnósticos histéricos em mulheres se relacionam a casos de neurastenia.
Domingues (2008, p. 38) analisa que:
FREUD (1893) relata um caso clínico chamado “Um caso de cura pelo hipnotismo com alguns comentários sobre a origem dos sintomas histéricos através da contravontade”. Neste texto, narra a história de uma mulher que, após dar à luz seu filho, se vê impossibilitada de amamentar. Freud utiliza a sugestão hipnótica para induzi-la a amamentar a criança e obtém a cura. Freud percebeu que o que estava por trás deste sintoma (impossibilidade de amamentação) era o fato de a paciente possuir ideias contraditórias àquelas que acreditava serem de maior importância. Estas ideias antitéticas não se manifestavam, pois, a paciente conseguia excluí-las de suas associações conscientes.
A esse respeito, Freud (apud Domingues, 2008), analisou que as mulheres que são acometidas de histeria vivenciam intenções opostas que ele chamou de contra vontade, convivendo com o sofrimento deste processo. No caso que será narrado abaixo, demonstra-se outra situação que envolve o sintoma da contra vontade.
[…] exausta com suas angústias e dúvidas acerca de suas tarefas de cuidar da criança enferma, tomou a decisão de não deixar que sequer um som saísse de seus lábios, com receio de perturbar o sono da filhinha, o qual tinha custado tanto a vir. Mas, no seu estado de exaustão, mostrou-se mais forte a concomitante ideia antitética de que ela, não obstante, pudesse fazer um ruído; e essa ideia teve acesso à inervação da língua, que sua decisão de se manter em silêncio talvez pudesse ter-se esquecido de inibir irrompeu no fechamento dos lábios e produziu um ruído que daí em diante permaneceu fixado por muitos anos, especialmente depois que se repetiu a mesma sucessão de fatos (FREUD, apud DOMINGUES, 2008, p. 38).
Têm-se, nestes exemplos de contravontade, a capacidade de o neurótico desejar o oposto, ficando explícito que a divisão da consciência se pauta em normas morais e sociais que se vinculam ao ideal de maternidade.
Compreende-se, baseado na teoria de Freud, que uma mulher saudável de postura moral é a que seria capaz de desempenhar de forma salutar o seu papel de mãe e esposa, analisando que a dedicação tanto a casa, quanto à família, as leva a adoecer, em virtude da contrariedade de seus desejos e pensamentos.
Freud (1896) no texto intitulado Observações Adicionais das neuropsicoses de defesa analisa os fatores de ordem etiológica da histeria. Assim, afirma que:
Descobri um determinante específico da histeria — a passividade sexual durante o período pré-sexual — em todos os casos de histeria (inclusive dois casos masculinos) que analisei. Não é necessário fazer mais do que uma menção ao enorme grau em que ficam diminuídas as alegações em prol de uma predisposição hereditária em face desse estabelecimento de fatores etiológicos acidentais como sendo determinantes. Além disso, fica aberto um caminho para se compreender por que a histeria é tão mais frequente nos membros do sexo feminino, pois, já na infância, estes são mais suscetíveis de provocar ataques sexuais. (FREUD, apud DOMINGUES, 2008, p. 39).
Freud afirma que a passividade, enquanto fator essencial do feminino, é importante para compreender a teoria psicanalítica sobre a mulher. Num outro olhar, analisa que a maternidade representa um peso para as mulheres, embora a maternidade e a sexualidade estejam inter-relacionadas, existe um abismo moral entre ambas. Embora a maternidade seja uma ideia que é aceita socialmente, a sexualidade da mulher se apresenta como um tabu, um pecado.
No texto Histeria de 1888, Freud associa a sexualidade com a origem dos sintomas histéricos, diminuindo a ocorrência quando as jovens se casam e aparecendo depois destas terem contraído o matrimônio a certo período de tempo.
Ao abordar a histeria, Freud desconsidera que sua predisposição é inata, pois se inicia da neurose da angústia virginal, da angústia das mulheres recém-casadas, das mulheres abstinentes de sexo, concebendo a sexualidade a partir de uma visão biológica (DOMINGUES, 2008). Contudo, a visão médico-organicista de Freud acerca da histeria como originária da disfunção sexual lembra as crenças antigas que afirmam que se uma mulher não mantiver relações sexuais, como também não gerar filhos, poderá desenvolver a histeria (FOUCAULT apud DOMINGUES, 2008).
A esse respeito, salienta-se que embora a maioria das pacientes histéricas sejam mulheres, o histerismo seria uma doença que retrata a mulher da época de Freud, ou seja, a mulher que era reprimida sexualmente e que vivia à mercê de conflitos morais, os quais se manifestavam no corpo. Vê-se, na concepção de Freud acerca das mulheres, um corpo feminino que ao se ligar ao emocional e ao psicológico, gera a doença nervosa. No próximo tópico se abordam os casos de mulheres com histeria.
4.2 AS HISTÉRICAS: DISCURSO E ANÁLISE CLÍNICA
No texto Estudos sobre a histeria (FREUD, 1895), descreve os casos clínicos analisados por ele e Breuer. Tais casos não se configuram enquanto um estudo sobre a mulher e sua feminilidade, mas caracterizam uma reflexão sobre esta.
O caso Ana O.:
Paciente de Breuer que desenvolve sintomas histéricos com manifestações físicas. Ana O. perdera o pai que sofria a um longo tempo de uma determinada doença, tendo sido dedicada a este no período em que esteve doente. Depois de perder o pai, Ana adoecera. Os sintomas da doença se caracterizavam pelo fato de Ana reviver os acontecimentos do ano em que seu pai falecera. Estes acontecimentos eram revividos em sequência temporal dos fatos. Neste contexto, a ligação entre a paciente e o pai não foi analisada com profundidade, pois Freud ainda não havia construído a teoria do Complexo de Édipo, embora a doença da paciente indicasse uma relação edipiana, afirmando a importância da família na estruturação das neuroses.
Breuer ouvia Ana O., compreendendo os sintomas de sua patologia por meio da recordação dos momentos decisivos desta. A própria Ana O. nomeia o tratamento de Breuer como a talking cure, a cura pela fala, como chimney-Sweeping, a limpeza da chaminé (BREUER, apud Domingues, 2008).
O caso Sra. Emmy Von N.:
Esta senhora era uma mulher de 40 anos de idade de origem da Livônia. Emmy narra cenários em que teve de se deparar com pessoas mortas em velórios, como também discorre acerca de brincadeiras que vivenciava, nas quais animais vivos ou mortos eram usados para assustá-la. Domingues (2008) afirma que Freud não associou estes eventos à sexualidade. No método de interpretação usado por Freud, este apagou, por meio de sugestão hipnótica, da memória da paciente as lembranças que lhe causavam perturbação. Freud compreendeu que os sintomas de histeria nesta paciente, iniciaram após o parto de sua filha, quando se sucedeu a morte do seu esposo, gerando uma forma específica de se relacionar com a criança. Assim, a maternidade associada à perda do marido passou a ter uma conotação negativa, onde inconscientemente Emmy culpava a filha pela morte do pai. Não obstante, a maternidade não a livrou da histeria, mas a abstinência sexual poderia estar relacionada ao surgimento desta patologia (DOMINGUES, 2008).
O caso Miss Lucy R.:
Lucy era uma jovem que trabalhava como governanta cuidando de duas crianças filhas de um homem viúvo. A jovem Lucy sofria com sensações olfativas de cunho subjetivo que lembravam o cheiro de pudim queimado. Freud, ao analisar o discurso da paciente, descobriu que o cheiro de pudim queimado estava relacionado à vontade de deixar de trabalhar, rompendo com a promessa que tinha feito à mãe das meninas no leito de morte, ou seja, Lucy tinha prometido à mãe que cuidaria das filhas depois de sua morte. A associação de Freud com tais questões citadas anteriormente, foi motivado pelo fato de que Lucy sentiu pela primeira vez o cheiro de pudim queimado depois de ter recebido uma carta de sua própria mãe alertando-a da possibilidade de deixar o emprego e romper com a promessa.
Outrossim, Freud interpretou que a vontade de deixar o trabalho encobria uma paixão pelo patrão, que não era consentida por este, pois a tratava com educação. Assim, percebe-se por meio da interpretação psicanalítica que o sofrimento da paciente era motivado pela paixão pelo patrão. A paixão contradizia a promessa a outra mulher, então significava uma espécie de traição por querer tomar o lugar da esposa falecida ao mesmo tempo em que indo embora, quebrava a promessa de cuidar dos seus filhos. Neste caso, existia um conflito entre a amizade, a sexualidade e a moral, colidindo com o sintoma histérico.
O caso Katharina
Esta moça era responsável pela estalagem, abordando Freud pelo fato dele ser médico. Ela narrou uma série de sintomas que Freud considerou delinear uma crise de angústia. Conforme Domingues (2008, p. 47):
O caso é narrado como se a sua personagem principal houvesse sido abusada sexualmente por seu tio, mas na realidade o autor do abuso sexual fora o pai. Freud preservou na época este importante dado, mas o adicionou em nota de rodapé. Katharina prosseguiu seu relato contando um fato que a deixou intrigada: a visão de Fransiska (sua prima) com o tio (seu pai) no quarto. Na época não entendera o que eles estavam fazendo, mas ficou paralisada por dias e depois adoeceu. Freud deduziu que o que viu no quarto provocou repulsa. Este sentimento será citado mais adiante no texto “Fragmento da análise de um caso de histeria” (FREUD, 1905) no qual sua paciente, Dora, manifesta repulsa numa situação em que fora confrontada com uma tentativa de sedução de um homem.
A interpretação psicanalítica de Freud revelou que esta paciente havia tido um insight por causa da seguinte lembrança: ao ver o tio (pai) sobre Fransiska “fez com que Katharina adoecesse porque ela recalcou o seguinte pensamento: era isso que meu pai queria fazer comigo! O recalque da compreensão do abuso iniciou a histeria por meio da conversão histérica” (DOMINGUES, 2008, p. 47).
O Caso Sra. Elizabete Von R.
No ano de 1892 foi encaminhada a Freud uma jovem de 24 anos de idade que possuía dificuldades para se locomover, tendo sido pré-diagnosticada como histérica. O médico que a encaminhou relatou que a moça estava vivendo uma série de problemas, dentre os quais: a morte do pai; a mãe passara por uma cirurgia nos olhos e uma irmã casada havia falecido recentemente. Os sintomas de Elizabete eram dor ao caminhar e ao manter-se de pé. Ao examinar as dores da paciente em questão, Freud percebeu que esta demonstrava uma expressão de prazer ao contorcer o corpo, como se sentisse cócegas voluptuosas, levando a concluir que as zonas doloridas eram as zonas histerogênicas. Para tratar a paciente, Freud desembaraçou o material psíquico patogênico camada por camada como se estivesse fazendo a escavação de uma cidade que fora soterrada. Com o objetivo de desembaraçar o material psíquico, Freud pedia que a paciente narrasse tudo que lembrasse. Quando aconteciam falhas de memória, Freud investigava os elos que faltavam, usando a hipnose em algumas situações.
Elisabete tinha duas irmãs, era ligada aos pais, residindo com estes em uma propriedade na Hungria. Sua mãe frequentemente apresentava problemas nos olhos e nervos. Seu pai a tratava como o filho homem e um amigo com quem trocava experiências, sendo por isso muito próxima dele.
No período dos 18 meses em que seu pai esteve doente, Elisabete apresentou a primeira dor nas pernas. A morte do pai deixou uma lacuna na vida desta família que ficou, de certa forma, isolada socialmente. Envolvida nestas perspectivas aflitivas, Elisabete, que tinha sonhos e era ambiciosa, foi adoecendo.
Freud apontou que as características de Elisabete eram comuns em casos de histeria: dores, ambição, sensibilidade moral, excessiva busca de amor que não era mais satisfeita pela família; independência de sua natureza, que não era compatível com os ideais da época (DOMINGUES, 2008). Assim, o histérico não consegue verbalizar literalmente a sua dor, revivendo-a em seu próprio corpo.
Compreende-se que os casos relatados por Freud embasaram a teoria da psicanálise, fundamentando a ideia de que a escuta e a interpretação das associações livres permite desvelar o que está contido no inconsciente, auxiliando na cura dos pacientes que conseguem resolver os conflitos de ordem interna.
CONCLUSÃO
O trabalho em questão analisou a visão de Freud sobre a mulher. A esse respeito, analisa-se que a Psicanálise é uma teoria que contribuiu para que se compreendesse que as fantasias, os sonhos e os esquecimentos representam sintomas de ordem psíquica que não devem ser ignorados, mas investigados.
Freud foi um médico que se dedicou a pesquisar vários assuntos de ordem psíquica, dentre os quais a histeria, que se caracterizava enquanto um enigma.
Charcot, em suas demonstrações clínicas, influenciou Freud a se estabelecer em Viena como um médico especializado em doenças nervosas. Naturalmente instigado por Charcot, Freud cria os fundamentos da teoria sobre a etiologia sexual das neuroses. Assim, Freud cria a Psicanálise, que se caracteriza enquanto uma teoria que contém conhecimentos sistematizados acerca da vida psíquica, cujo método de investigação utiliza a interpretação da palavra do paciente. Freud revolucionou a ciência ao discorrer que existem no aparelho psíquico o inconsciente, o pré-consciente e o consciente, ficando no inconsciente os conteúdos que são reprimidos por algum motivo de ordem moral, social ou psicológica. Freud compreendeu que as cenas imaginadas pelos pacientes o influenciavam na vida real.
Conclui-se que a experiência analítica pode libertar o paciente do sofrimento psíquico, dando ao homem a liberdade para amar e construir sua existência.
Nos estudos sobre a mulher e a histeria, Freud descobriu associações entre esta patologia e a sexualidade, analisando que as mulheres histéricas vivenciam intenções opostas à realidade de sua vida, ou seja, o sintoma da contravontade, denotando que a consciência se pauta em normas sociais e morais que trazem conflitos entre a maternidade e a sexualidade.
Enfim, ao analisar os casos clínicos de algumas mulheres tratadas por Freud, conclui-se que os sintomas histéricos vão desde sensações físicas de nojo e dor, envolvendo sensações olfativas e de paralisia de membros inferiores. A importância da escuta destas mulheres foi primordial para que se criasse o método da análise que permite descobrir o que está encoberto no inconsciente e é a fonte das aflições que causam a histeria.
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[1] Errância: Movimento que marca o êxodo do povo judeu.
Carlos Terceiro é Mestre e Doutor em psicanálise pela ABMPDF, psicopedagogo, pedagogo, jornalista e graduando em Psicologia Clínica pela faculdade Anhanguera/DF.